Quebrando o segredo dos caça-níqueis on-line

Imagens originais Cassino On-line

por Isnard Martins*

Editado no Caderno de Informática - 21/10/2002 - O GLOBO por André Machado


Quem nunca teve a curiosidade de observar as entranhas mecânicas de uma slot machine (máquinas caça-níqueis instaladas em cassinos), desvendando a seqüência perversa do sistema de premiações que tanto empobrece e muito raramente enriquece esperançosos e ingênuos usuários?
Antes de mais nada, um esclarecimento: não jogo a dinheiro nem por mero entretenimento social, mas confesso-me admirador dos simuladores, tendo lidado com eles em diversas oportunidades profissionais e educacionais. Casualmente, deparei-me com slot machines numa navegação despretensiosa num banner do Yahoo. O cassino oferecia jogo em modo entretenimento, com virtual-money , sem compromisso financeiro ou com dinheiro real, através de cartão de crédito on-line (gostaria de ver o tamanho das orelhas de alguém que oferece voluntariamente seu cartão de crédito a um site destes).
Fiz o download do módulo local do cassino e interessei-me pelos três modelos de slot disponíveis, que têm aparência realista e funcionalidade sofisticada. Com as facilidades oferecidas para o jogo em modo diversão “sem limites”, foi possível um estudo detalhado e profundo do comportamento operacional dos equipamentos e do sistema de premiação. Sob o ponto de vista do usuário, a visão oferecida é uma slot autêntica, com presença, som, operação, funcionamento e, principalmente, capacidade de perder ou ganhar inerentes ao perverso sistema de apostas característico dos caça-níqueis de cassinos reais.
O ponto de partida da pesquisa foi a análise do conteúdo localizado no diretório específico instalado pelo sistema, após o download. Normalmente estes módulos instalados no micro do usuário — programas, sons, imagens e recursos complementares — apresentam-se encapsulados, empacotados em bibliotecas que tornam impermeável e invisível o acesso a qualquer segredo do sistema. Para minha surpresa, isto não ocorreu nesta instalação. Exceto pela funcionalidade oculta, representada pela segunda e certamente mais complexa fase da engenharia reversa, encontrei residente no diretório todo o conteúdo desejado para o estudo: imagens dos equipamentos, sons incorporados às atividades, desenhos e efeitos de sensibilidade de auto-relevo. Foi como localizar a cópia da planta de um motor aberto, suas peças industriais, sem as instruções para montagem.
Para consecução do “plano” de investigação seria necessária a observação criteriosa do funcionamento regular das slots , incluindo estudo de freqüência das premiações e detalhes de interfaceamento do usuário com as máquinas. E um estudo criterioso das “partes móveis”, ativação dos sons, temporalidade, seqüência das tarefas e bloqueios mecânicos.
Os protótipos da engenharia reversa foram desenvolvidos em Visual Basic, com resultados plenamente satisfatórios. Porém, o desafio maior estava por vir, quando precisaria descobrir os truques gráficos dos efeitos especiais provocados pela ilusão de rotação dos tambores de figuras. As slots machines apresentam três ou mais tambores com figuras que giram aleatoriamente, parando gradualmente e formando configurações. Estas configurações podem representar ou não prêmios.
Entretanto nada se compara ao esforço para descoberta da lei de formação dos sorteios aleatórios, particular para cada tipo de slot . Por breves momentos senti-me desvendando os segredos da máquina de códigos japonesa na Segunda Guerra, habilmente aberta pelos americanos, e cuja confidência permitiu-lhes o domínio da encarniçada guerra aero-naval no Pacífico. Para um ergonomista pesquisador, este desafio me deixava mais feliz que cachorro com dois rabos. Foi trabalhoso, porém os resultados foram gratificantes. Consegui a pretendida engenharia reversa das três máquinas, com requintes de personalização de detalhes funcionais para tornar seu uso mais motivador.
O resultado dos aspectos chance/premiação foi previsível. A abertura das slots revelou a seqüência das probabilidades contra e a favor do apostador em forma de matrizes de figuras. Para aferir as chances coloquei os protótipos simulados em “bancada” contabilizando continuamente resultados. Diagnóstico apurado após cinco dias de operação ininterrupta:
— As máquinas 1 e 2 oferecem um cenário altamente favorável ao usuário se o sistema de sorteios for rigorosamente aleatório e baseado em chances limpas. O usuário raramente perde.
— A máquina 3 (vídeo-pôquer) não oferece nenhuma chance ao usuário. É uma “limpadora de bolsos”.
— A premiação da slot 3 oferece premiação muito abaixo da esperança matemática (valor apostado dividido pela probabilidade de sua ocorrência).
— Teoricamente, se o usuário jogasse continuamente o mesmo valor nas máquinas 1 ou 2 teria ganho infinito. Isto faz crer que o sistema de premiação das máquinas 1 e 2 é afetado por comando on-line, alterando a aleatoriedade do sorteio, criando artificialmente as perdas.
— Comparando o comportamento on-line das máquinas 1 e 2 com os resultados apresentados pelos protótipos off-line da engenharia reversa é possível entender de forma bastante clara o diagnóstico acima apresentado.
— Aparentemente, as slots usam como chamariz um atraente sistema de premiações ao usuário que, após a armadilha do jogo simulado com moeda virtual, encoraja-se ao jogo com moeda real bancado com cartão de crédito. Não se trata se vai ou não perder, mas com qual velocidade e quando irá certamente perder.
— É impossível ganhar na máquina 3. O baralho é completo (52 cartas) e durante toda a fase de bancada, nenhum street-flash ou royal street-flash (seqüências completas, do mesmo naipe) foi obtido. As chances são remotas e os ganhos reduzidos não cobrem as perdas.
— Para piorar a perversidade da máquina 3, são oferecidas cinco faixas de premiação com retorno muito baixo. O prêmio para o PAR só é cedido para “par figurado” ou “ás”, estreitando ainda mais as chances de ganhos do usuário.
Os modelos desenvolvidos ficaram acima do resultado esperado. O comportamento mecânico das slots ficou equilibrado e aparentemente ausente de erros.
Este trabalho no entanto terá um destino mais nobre que depenar investidores iludidos com o canto da sereia das slot machines . Meus alunos de ergonomia analisarão aspectos como usabilidade, interface e projeto industrial dos protótipos. Um destino sóbrio para instrumentos divertidos porém perversos.

Isnard Martins é professor da PUC-Rio

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O Globo
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